Uma Experiência Natural

Materiais educativos em várias línguas acerca da Propriedade Intelectual e do Domínio Público

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UMA EXPERIÊNCIA NATURAL

James Boyle, 22 de Novembro de 2004

Imagine um processo de análise de medicamentos que funcione assim: os representantes da empresa farmacêutica vêm ter com os reguladores e dizem-lhes que os seus medicamentos são bons e que devem ser aprovados. Não têm quaisquer dados que sustentem esta afirmação, para além de umas quantas anedotas sobre pessoas que querem tomar o medicamento, e talvez possam apresentar modelos muito simples sobre a forma como o medicamento pode vir a afectar o corpo humano. O medicamento é aprovado. Não há testes, não há dados de natureza alguma, não há qualquer espécie de acompanhamento. Ou imagine um processo de tomada de decisões acerca de regulação ambiental em que não há dados, nem sequer tentativas de os reunir, sobre os efeitos dos poluentes que estão a ser estudados. Até o mais severo dos críticos da regulação de medicamentos ou da regulação ambiental admitiria que normalmente as coisas não correm assim tão mal. Mas é precisamente desta maneira que muitas vezes se tomam decisões na área da Propriedade Intelectual.

Como é que estabelecemos as regras de fundo da Era da Informação? Representantes das indústrias interessadas vêm ter com os reguladores e pedem-lhes que aumentem a sua renda através de um novo direito de propriedade intelectual. Apresentam previsões repletas de maus augúrios, contam anedotas, cuidadosamente escolhidas para falarem ao coração do legislador, trazem celebridades que testemunham - muitas vezes de forma incoerente, mas com visível carisma - e apresentam modelos económicos de uma simplicidade confrangedora. O modelo económico básico costuma ser o seguinte: "Se me derem um direito maior, eu vou ter mais incentivos para inovar. Por isso, quanto maiores os direitos, maior a inovação. Certo?" Bom, não exactamente. Mesmo sem dados, estes modelos estão claramente errados - possuir direitos de autor sobre o alfabeto não vai fazer com que tenhamos mais livros, patentear E=mc2 não vai originar mais inovação na área da ciência. A Propriedade Intelectual cria quer barreiras, quer incentivos à inovação. É evidente que o argumento "mais é melhor" tem os seus limites. Extensões de direitos podem ser benéficas ou prejudiciais, mas sem dados económicos ex ante e uma análise ex post nunca o saberemos. À falta de dados que caracterizem o outro lado das coisas, a presunção deve obviamente ser contra a criação de monopólios legalizados, mas mesmo assim o vazio empírico que marca estes debates é frustrante.

Aquilo de que precisamos mesmo é de um caso de estudo em que um país adopte um novo direito de propriedade intelectual e outro não, e assim dentro de alguns anos podemos avaliar até onde é que ambos chegaram.

Esse caso, porém, já existe. Temos o "direito sobre as bases de dados." A Europa adoptou a Directiva relativa à Protecção Jurídica de Bases de Dados em 1996, que conferiu um elevado grau de protecção em sede de direitos de autor às bases de dados, e ao mesmo tempo conferiu um novo direito "sui generis" que se aplica até às bases de dados constituídas por compilações não-originais de factos. Nos Estados Unidos, pelo contrário, num caso decidido em 1991 (Feist), o Supremo Tribunal deixou bem claro que não podia haver direitos de autor sobre compilações não-originais de factos. (O caso não é tão revolucionário como normalmente é apresentado. A maior parte dos tribunais de segunda instância americanos já tinha declarado há muito tempo que assim era. Na verdade, uma das pedras de toque do sistema de Propriedade Intelectual dos Estados Unidos é que nem os factos nem as ideias podem ser objecto de direitos proprietários.) Desde 1991, o Congresso tem conseguido resistir às frenéticas tentativas de umas quantas empresas de bases de dados que pretendem ver criado um direito especial sobre as bases de dados, protegendo os factos. O mais interessante é que, para além da comunidade académica, científica e os partidários do libertarismo civil, muitas empresas de bases de dados, e até mesmo aquela entidade que abomina todas as concepções comunistas de propriedade, a Câmara do Comércio dos Estados Unidos, se opõem à criação de um direito deste género. Acreditam que os fornecedores de bases de dados podem proteger-se de forma eficaz através de contratos, de medidas técnicas como passwords, podem optar por fornecer serviços acessórios, etc. Além disso, defendem que uma protecção demasiado forte das bases de dados pode, antes do mais, dificultar o aparecimento das próprias bases de dados; os factos de que precisamos podem vir a tornar-se inacessíveis. No entanto, a pressão para criar novos direitos persiste, alimentada por aqueles que bradam que os Estados Unidos se têm que "harmonizar" com a Europa. E aqui temos a nossa experiência natural. É então de presumir que os economistas do governo estejam cheios de trabalho quer nos Estados Unidos, quer na Europa, tentando perceber se o direito na realidade funciona? Hum... Não.

Apesar do facto de a Comissão Europeia ter a obrigação legal de rever a Directiva relativa à Protecção Jurídica de Bases de Dados e os seus efeitos na concorrência (o respectivo relatório devia ter sido apresentado há três anos), parece que ninguém está a prestar atenção aos factos que podem indicar se a Directiva ajuda ou prejudica a União Europeia, nem interessado em ver se a indústria de bases de dados nos Estados Unidos colapsou ou prosperou. É uma pena, porque os factos existem, e apontam para uma realidade no mínimo chocante.

Os direitos da Propriedade Intelectual são uma forma de monopólio criado pelo Estado e "a tendência natural dos monopólios", como Macaulay sublinhou, é de "tornar os bens valiosos, torná-los escassos e torná-los maus." Os monopólios são um mal, mas na maior parte dos casos têm que ser aceites como um mal necessário para a produção de certos tipos de bens, para a prossecução de objectivos sociais específicos. Neste caso, o "mal" traduz-se obviamente no aumento do preço das bases de dados, e na possibilidade conferida pela lei ao monopolista para excluir os seus rivais do uso da sua base de dados - o objectivo de lhes conceder um novo direito não é outro senão este. O "bem" é que é suposto termos imensas bases de dados novas, bases de dados que não teríamos se este direito não existisse.

Se o direito sobre as bases de dados funcionasse, seria de esperar respostas positivas a três questões cruciais. Primeira: os índices de crescimento da indústria europeia de bases de dados aumentaram desde 1996, enquanto a indústria norte-americana de bases de dados perdeu o vigor? (Se os defensores da protecção das bases de dados estiverem correctos, a quebra na indústria de bases de dados nos Estados Unidos teria que ter sido particularmente acentuada de 1991 em diante; um dos seus argumentos foi o de que o caso Feist constituía uma mudança na lei então em vigor e uma enorme surpresa para a indústria.)

Segunda questão: os principais beneficiários do direito sobre as bases de dados na Europa estão a produzir bases de dados que de outra maneira não teriam produzido? É óbvio que se a sociedade concede um direito sobre bases de dados quando as bases de dados teriam sido criadas de qualquer maneira, está a gastar dinheiro que não precisava de ter gasto - está a aumentar desnecessariamente os preços que os consumidores terão que pagar, e a agravar os custos dos concorrentes. Esta pergunta relaciona-se com o perfil do direito - foi concebido de forma demasiado ampla, aplicando-se a mais áreas do que aquelas que são necessárias para estimular a inovação?

Terceira questão, e esta é a mais difícil de analisar: o direito está a estimular a inovação e a concorrência ou a sufocá-las? Por exemplo, se a existência do direito permitisse uma vaga de entradas no mercado e esses newcomers viessem depois a usar os seus direitos para desencorajar futuras entradas, ou se promovêssemos algum aumento de bases de dados mas no geral tornássemos grandes quantidades de informação científica mais difícil de obter, então o direito sobre bases de dados poderia na verdade estar a sufocar a inovação que foi concebido para fomentar.

São estas as três questões a que a Directiva relativa à Protecção Jurídica de Bases de Dados deve responder. Mas dispomos já de respostas preliminares para as três perguntas e são fortemente negativas, ou no mínimo extremamente duvidosas.

Os direitos sobre as bases de dados são necessários para termos uma indústria de bases de dados próspera? A resposta é um claro "não". Nos Estados Unidos, a indústria de bases de dados aumentou mais de 25 vezes desde 1979 e - contrariamente ao cenário pintado por aqueles que qualificam o caso Feist como uma revolução - durante todo esse período, era ponto assente na maior parte dos estados que as bases de dados não-originais não estavam protegidas por direitos de autor. Os números tornam-se ainda mais interessantes no mercado de bases de dados jurídicas. Os dois maiores defensores da protecção de bases de dados nos Estados Unidos são Reed Elsevier, dono da Lexis, e a Thomson Publishing, detentora da Westlaw. O mais interessante é que ambas as empresas fizeram as suas principais aquisições no mercado norte-americano de bases de dados jurídicas depois da decisão do caso Feist, numa altura em que ninguém teria pensado que bases de dados não-originais pudessem ser objecto de direitos de autor. Isto parece apontar para o facto de ambos acreditarem que podiam ganhar dinheiro mesmo sem o direito sobre as bases de dados. Como? Como nos velhos tempos: competindo nas características do serviço, na exactidão da informação, nos serviços acessórios, cobrando dinheiro aos utilizadores que quisessem aceder à sua base de dados, etc.

Se estas empresas julgaram que podiam ganhar dinheiro desta maneira, tinham razão. Jason Gelman, um dos nossos estudantes, chama a atenção num trabalho recente para o facto de o Departamento de Regulação Jurídica da Thomson ter tido uma margem de lucro de mais de 26% no primeiro quadrimestre de 2004. A margem de lucro de Reed Elsevier na LexisNexis em 2003 foi de 22,8%. As duas margens de lucro foram significativamente superiores à média da empresa e ambas foram obtidas principalmente no mercado norte-americano de bases de dados jurídicas, um mercado cujo valor total é de 6 biliões de dólares e que prospera sem a Propriedade Intelectual dispense uma forte protecção às bases de dados. (Primeira regra que os reguladores devem reter: quando alguém com uma margem de lucro superior a 20% vos pede uma protecção adicional sob a forma de monopólio, pensem duas vezes antes de concordarem.)

E em relação à Europa? Há algumas boas notícias para os defensores de protecção das bases de dados. Como Hugenholtz, Maurer e Onsrud sublinham num interessante artigo publicado na Science Magazine, registou-se um acentuado aumento do número de empresas que entraram no mercado europeu de bases de dados imediatamente a seguir à implementação da Directiva nos Estados Membros. E, no entanto, este artigo, bem como "Accross Two Worlds", um fascinante estudo de Maurer, sugerem que o índice de entrada caiu logo a seguir para níveis similares aos que se verificavam antes da Directiva. A análise de Maurer mostra que o índice de atrição é também muito alto nalguns mercados europeus no período que se segue à aprovação da Directiva - mesmo com o novo direito, muitas empresas abandonam o mercado.

Feitas as contas, a indústria de bases de dados britânica - na Europa, a mais significativa nesta área - conta com 200 novas bases de dados nos três anos imediatamente a seguir à implementação da Directiva. Em França, não há praticamente diferenças assinaláveis no número de bases de dados e o número de fornecedores cai drasticamente. Na Alemanha, a indústria de bases de dados conta com quase 300 novas bases de dados no período imediatamente a seguir à Directiva - um aumento notável -, das quais cerca de 200 desaparecem rapidamente. Durante o mesmo período de tempo, a indústria dos Estados Unidos ganha cerca de 900 bases de dados novas. Moral da história? A indústria europeia conseguiu um boom concentrado, e algumas das novas empresas mantiveram-se no mercado; é um benefício, embora seja um benefício dispendioso. Mas os índices de crescimento das bases de dados voltaram a cair para níveis pré-Directiva, enquanto os custos anti-competitivos da protecção das bases de dados são agora uma realidade permanente no panorama europeu. Os Estados Unidos, pelo contrário, conseguiram manter uma taxa constante de crescimento sem pagarem os custos de um monopólio. (Segunda regra para os reguladores: não criem direitos sem fortes indícios que demonstrem que os potenciais incentivos compensam os custos anti-competitivos.)

Analisemos agora a segunda questão. A Directiva relativa à Protecção Jurídica de Bases de Dados estimulou a produção de bases de dados que de outra maneira não teriam surgido? Uma vez mais, Hugenholtz et alia apontam para o facto de a maioria dos casos registados na vigência da Directiva serem de bases de dados que teriam sido criadas de qualquer maneira - listas telefónicas, tabelas de programação televisiva, horários de concertos. Uma análise dos casos mais recentes aponta para o mesmo padrão. Estas bases de dados são inevitavelmente produzidas pelo modo de actuação do negócio em questão e não podem ser independentemente compiladas por um concorrente. O direito sobre as bases de dados só serve para limitar a concorrência no fornecimento de informação. Na semana passada, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sublinhou implicitamente este ponto numa série de casos relacionados com resultados de jogos de futebol, de corridas de cavalos, etc. Rejeitando a opinião estranhamente proteccionista e tendenciosa do Advogado-Geral, o Tribunal decidiu que o mero funcionamento do negócio que gera dados não é "investimento substancial" suficiente para justificar a aplicação do direito sobre as bases de dados. Seria agradável pensar que este é o início de uma vaga de cepticismo em relação ao alcance da Directiva, cepticismo que até poderá vir a contagiar a análise que a Comissão vai fazer dos efeitos anti-competitivos da Directiva. Todavia, o Tribunal não discute com profundidade os motivos económicos que justificam esta interpretação; a análise é meramente semântica e definicional, em profundo contraste com as decisões que o Tribunal tem tomado em matéria de concorrência.

Perguntemo-nos então que tipos de bases de dados é que estão a ser gerados por este novo e arrojado direito. A resposta encontra-se algures entre o bathos e o pathos. Aqui estão algumas das maravilhosas "bases de dados" que alguém achou que valia a pena serem discutidas em tribunal: um website que consistia numa compilação de 259 hyperlinks sobre "recursos para pais", uma colecção de poemas, uma colecção de anúncios variados, cabeçalhos de notícias locais, tabelas de música popular. A triste lista não tem fim. A Comissão Europeia pode perguntar-se se é mesmo este o tipo de "bases de dados" que queremos encorajar através de um monopólio legal, e se é neste tipo de protecção que queremos empenhar os nossos recursos judicias. O facto de a maior parte dos factos acima mencionados poder ser encontrado online nos Estados Unidos, onde não existe esse tipo de protecção, também parece ser digno de referência. Pelo menos, os dados apontam no sentido de que o direito foi concebido de forma demasiado ampla e que pode ser aplicado demasiado facilmente de formas que são profundamente anti-competitivas.

Por fim, será que o direito sobre as bases de dados está a estimular a inovação científica ou a travá-la? Neste campo os dados são meramente sugestivos. Houve cientistas que argumentaram que o direito sobre as bases de dados na Europa, juntamente com a perversa falência dos governos europeus no aproveitamento das limitadas excepções para a investigação científica permitidas pela Directiva, fez com que se tornasse muito mais difícil reunir dados, reproduzir estudos e analisar artigos publicados. Com efeito, os corpos científicos académicos contam-se entre os mais ferozes críticos da protecção das bases de dados. Mas provas negativas, por natureza, são difíceis de produzir: "mostrem-me a ciência que não produziram!" É claro que quer a ciência quer o comércio nos Estados Unidos beneficiaram extraordinariamente da abertura da data da política americana em relação ao tratamento de dados. Voltarei a abordar este assunto num próximo artigo.

A minha posição em relação aos direitos de Propriedade Intelectual sobre bases de dados nem sempre foi contra. Na realidade, num livro escrito antes da promulgação da Directiva relativa à Protecção Jurídica de Bases de Dados, defendi que havia um respeitável argumento económico para a existência de tal protecção e que precisámos de mais estudos acerca desta matéria. Agora dispomos também dos factos. Se a Directiva fosse um medicamento, o governo retirá-lo-ia do mercado até que a sua eficácia e contra-indicações pudessem ser avaliadas. No mínimo, a Comissão precisa de avaliar detalhada e empiricamente os efeitos da Directiva, e precisa de ajustar as definições nela contidas, bem como de calibrar as suas limitações. Mas há ainda uma segunda lição a aprender. Este artigo de 2000 palavras analisa mais profundamente os efeitos económicos empíricos da Directiva do que as 600 páginas sobre os efeitos da Directiva que a Comissão pagou a uma entidade privada para elaborar. É um escândalo. E é um escândalo tipicamente característico da maneira como se têm vindo a tomar decisões relativas à Propriedade Intelectual. O Presidente Bush não é o único a tomar decisões baseadas apenas na sua fé.