Um Manifesto acerca da OMPI e o Futuro da Propriedade Intelectual

Materiais educativos em várias línguas acerca da Propriedade Intelectual e do Domínio Público

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Um Manifesto acerca da OMPI e o Futuro da Propriedade Intelectual

Sumário

Neste Manifesto, o Professor James Boyle1 defende que têm sido cometidos erros sistemáticos na política de tomada de decisões relativas à Propriedade Intelectual 

I. INTRODUÇÃO

As leis que regem a Propriedade Intelectual são o nervo central da Era da Informação; afectam os mais variados domínios, desde a disponibilidade e preço dos medicamentos para a SIDA, aos padrões do desenvolvimento internacional, à arquitectura das comunicações via Internet. Tradicionalmente, estas leis têm sido elaboradas como contratos entre as indústrias afectadas facilitados pelo Estado. Na medida em que o “interesse público” alguma vez figurou nessas discussões, assumiu-se que se resumia ao eventual poder de compra dos “produtos” – medicamentos, filmes, livros – cujos criadores e distribuidores recebem os seus incentivos através dos direitos da Propriedade Intelectual. E, no entanto, os direitos da Propriedade Intelectual não são fins em si mesmos. O seu objectivo é fornecer-nos um sistema descentralizado de inovação na ciência e na cultura: nenhuma agência governamental deve escolher quais os livros que devem ser escritos, ou ser a única entidade com uma palavra a dizer na escolha das tecnologias que vão ser desenvolvidas. Em vez disso, a criação de monopólios legais limitados chamados direitos de Propriedade Intelectual oferece-nos uma maneira de proteger e recompensar aqueles que inovam na arte e na tecnologia, encorajando as firmas a produzirem produtos de qualidade, e permitindo aos consumidores confiar na identidade dos produtos que adquiriram. As leis que regem os direitos de autor, as patentes e as marcas registadas devem produzir precisamente estes efeitos – pelo menos em certas áreas da inovação –, mas isso só sucederá se os direitos tiverem sido estabelecidos a um nível correcto, nem demasiado amplos, nem demasiado limitados. 

A Organização Mundial da Propriedade Intelectual, ou OMPI, foi criada com base na tentativa de promover e harmonizar as leis que regem a Propriedade Intelectual a nível internacional, apesar de o objectivo da Organização no sistema das Nações Unidas ser significativamente mais amplo: “promover a actividade intelectual criativa e (…) facilitar a transferência de tecnologia relacionada com a propriedade industrial para os países em vias de desenvolvimento, de forma a acelerar o desenvolvimento económico, social e cultural.” A OMPI tem apenas 34 anos de existência, mas a sua história remonta há 120 anos, aos Tratados de Paris e Berna. Durante este período, a OMPI e os secretariados internacionais que a precederam levaram a cabo um trabalho de grande valor. Só que os tempos mudaram desde 1883, e até mesmo desde que a OMPI foi fundada em 1970; paralelamente, parece que algumas das mais antigas lições acerca da Propriedade Intelectual foram sendo esquecidas ou ignoradas. A OMPI tem uma influência decisiva na determinação da política de inovação a nível mundial. Mas são necessárias mudanças radicais, quer no papel, quer na atitude da Organização, se esta quiser prosseguir o seu verdadeiro objectivo – a promoção da inovação nas áreas da ciência, tecnologia e cultura, para benefício dos povos do mundo. 

A. A “Cultura Maximalista de Direitos” e a Perda de Equilíbrio 

  • À medida que a amplitude, o escopo e o termo da protecção concedidos em sede de Propriedade Intelectual foram crescendo exponencialmente ao longo dos últimos 30 anos, o princípio fundamental de equilíbrio entre o domínio público e a esfera da propriedade parece ter-se perdido. Os potenciais custos desta perda de equilíbrio são tão preocupantes quanto os custos da pirataria que têm dominado as discussões em torno da política de tomada de decisões a nível internacional. Onde a ideia tradicional de que a Propriedade Intelectual via uma fina camada de direitos em torno de um domínio público cuidadosamente preservado, a atitude contemporânea parece defender que o domínio público deve ser eliminado sempre que possível. Os direitos de autor e as patentes, por exemplo, eram tradicionalmente concebidos de forma a conferir direitos de propriedade que protegiam a expressão e a invenção, respectivamente. A camada de ideias acima desses direitos, e de factos que lhe servia de substrato, permaneciam no domínio público, permitindo a todos reusá-los como base para as suas criações ou para criarem algo inteiramente novo. As ideias e os factos nunca podiam ser objecto de direitos proprietários. E, no entanto, as leis contemporâneas da Propriedade Intelectual estão a afastar-se rapidamente deste princípio. Agora temos direitos sobre bases de dados que cobrem factos, sequências de genes, métodos de negócios e patentes de software, barreiras digitais que tornam o domínio público inacessível, colocando-o praticamente ao mesmo nível da esfera da propriedade privada… a lista não tem fim. E enquanto estas regras diferem de país para país, a pressão para harmonizá-las é exercida sempre no sentido ascendente, tendendo-se a proteger os factos da forma mais forte possível, optando-se por um termo exageradamente longo para os direitos de autor, alargando-se o mais possível o escopo da patenteabilidade. 
  • A política da Propriedade Intelectual tem andado perigosamente ao sabor da “cultura maximalista de direitos”, que faz com que o debate se disperse. A assumpção parece ser que promover a Propriedade Intelectual equivale a promover automaticamente a inovação e esse processo parece implicar que quantos mais direitos forem criados, melhor. Mas ambas as assumpções são categoricamente falsas. Mesmo quando o recurso a direitos de Propriedade Intelectual é a melhor maneira para promover a inovação – e há muitas áreas em que não o é – só através de regras que estabeleçam um equilíbrio adequado entre o domínio público e a esfera da propriedade privada é que obteremos a inovação que desejamos. Todavia, os tratados comerciais impõem níveis mínimos muito elevados de protecção em sede de Propriedade Intelectual a nível internacional, sem quase nunca imporem “tectos”, apesar do facto de demasiada protecção através da Propriedade Intelectual ser tão prejudicial, e distorcer tanto os fluxos comerciais, quanto a existência de pouca protecção. Esta assimetria espelha-se no processo de tomada de decisões a nível internacional. 
  • Enquanto organização especializada na matéria, a OMPI deveria ser relativamente imune à falácia de que a política da Propriedade Intelectual deve visar sempre o estabelecimento de direitos mais fortes. No entanto, uma vez que a alternativa é fazer política da Propriedade Intelectual através das organizações que regulam o comércio, junto das quais os países em vias de desenvolvimento têm menos influência, há muitas áreas em que os Estados têm usado a OMPI para, em vez de restringirem, tomarem parte na corrida ao armamento em que se transformou a Propriedade Intelectual. É uma atitude extremamente infeliz, porque leva a que a OMPI abdique do papel que poderia e deveria desempenhar. Na realidade, a adopção de uma agenda maximalista não é uma boa política nem sequer para os países em vias de desenvolvimento. É uma política que representa os interesses e posições de uma franja de negócios assinalavelmente limitada, e fá-lo com pouco escrutínio democrático; mais do que em qualquer outra área cuja importância seja tão significativa como a da Propriedade Intelectual, a participação da sociedade civil na tomada de decisões relativas à Propriedade Intelectual tem sido substancialmente reduzida. Se a única agência especializada das Nações Unidas responsável pela manutenção do equilíbrio adequado no sistema de Propriedade Intelectual resolvesse ceder a esta cultura maximalista de direitos, uma cultura limitada e parcial, estaríamos em vias de assistir a uma tragédia. 

B. A OMPI e o Desenvolvimento Internacional: Um Tamanho Único (“XL”) para Todos? 

  • A história do desenvolvimento no campo da Propriedade Intelectual é uma história de mudanças. Os países que agora apregoam as virtudes de níveis mínimos expansivos de protecção em sede de Propriedade Intelectual, não seguiram eles próprios esse caminho durante o seu desenvolvimento industrial. A protecção concedida pela Propriedade Intelectual foi mudando ao longo dos tempos, respondendo ao contexto interno e externo, quer a nível económico, quer a nível tecnológico. Inclusivamente no caso de indústrias em certos países desenvolvidos, os padrões de uso da Propriedade Intelectual variaram tipicamente à medida que a indústria foi amadurecendo e progredindo. Compare-se, por exemplo, o início quase espontâneo de Silicon Valley com o seu actual aglomerado de departamentos legais. Dado este e outros casos, seria de esperar que os acordos internacionais relativos à Propriedade Intelectual, quer alcançados através de tratados comerciais ou no contexto da OMPI, fossem altamente sensíveis à ideia de que “um tamanho não serve para todos” quando está em jogo a articulação da política de Propriedade Intelectual com a posição dos países em vias de desenvolvimento – um grupo que dificilmente pode ser considerado homogéneo. Apesar de tanto a OMPI como o Acordo Relativo aos Aspectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (TRIPS) afirmarem que promovem a flexibilidade, os seus críticos têm chamado à atenção para o facto de que o que na realidade tem acontecido é que os países em vias de desenvolvimento têm sido pressionados para a adoptar os níveis de protecção “TRIPS-plus” – enquanto que o progresso em relação às excepções humanitárias e regionais, apesar de claramente previstas nos acordos internacionais, tem sido arrancado a ferros. Repetidamente, esbarramos nas mesmas assumpções: a criação de direitos é sempre a melhor forma de estimular a inovação. Mais direitos significam mais inovação. Os tratados internacionais devem estabelecer mínimos (sem se preocuparem com os máximos). Um tamanho serve para todos. E esse tamanho tem sido o XL. 
  • Esta atitude “um tamanho serve para todos” tem sido largamente criticada, quer pelos países desenvolvidos, quer pelos que se encontram em vias de desenvolvimento. Nas palavras da Comissão do Reino Unido para a Propriedade Intelectual, “os sistemas de Propriedade Intelectual podem, se não tiverem cuidado, originar distorções que são prejudiciais para os interesses dos países em vias de desenvolvimento. Os países desenvolvidos deveriam prestar mais atenção no sentido de reconciliarem os seus próprios interesses comerciais com a necessidade de reduzir a pobreza nos países em vias de desenvolvimento, o que é no interesse de todos. Os países em vias de desenvolvimento não devem ser obrigados a standards mais elevados de Propriedade Intelectual sem uma análise séria e objectiva do impacto que esses standards terão no desenvolvimento e nas pessoas pobres. Devemos assegurar que o sistema global de Propriedade Intelectual se desenvolva de uma forma que incorpore as necessidades dos países em vias de desenvolvimento e, o que é mais importante, de forma a que contribua para a redução da pobreza nesses países, através do estímulo à inovação e transferência de tecnologia relevante para os países em vias de desenvolvimento, ao mesmo tempo que se disponibilizam os produtos da tecnologia aos preços mais competitivos possíveis.” No entanto, devido ao facto de o debate acerca da Propriedade Intelectual ser tão limitado – quer em termos de assumpções intelectuais, quer em termos de grupos que nele intervêm – a atitude “um tamanho serve para todos” acaba por prevalecer na maior parte dos casos. 
  • Mesmo nos casos em que mecanismos de flexibilidade e excepções são incorporados no regime internacional, os países em vias de desenvolvimento não possuem, muitas vezes, a capacidade técnica e legal necessária para tirar pleno partido desses mecanismos. Nas leis que regem a Propriedade Intelectual, as excepções e as limitações são extremamente importantes. Não são uma mera suspensão da política da Propriedade Intelectual, mas antes uma parte integrante dessa mesma política. É por isso que a missão da OMPI de dotar os países em vias de desenvolvimento de mecanismos que lhes permitam aproveitar a flexibilidade incorporada no sistema é tão importante como persuadi-los a adoptar e implementar a mais recente e draconiana legislação em matéria de gestão de direitos digitais. Na prática, porém, os recursos só fluem num sentido. 

C. A OMPI num Mundo Online: Lutando contra a Internet em vez de a Aproveitar? 

  • A OMPI preside agora à harmonização de um conjunto de leis que regulam os cidadãos-editores no ciberespaço, bem como a protecção tradicional dos editores tradicionais relativamente aos seus concorrentes na mesma indústria. O alcance da lei é marcadamente diferente: regula directamente mais pessoas, regula-as com efeitos diferentes, através de meios diferentes, e implicando normas diferentes. Antigamente, as actividades que despoletavam a protecção da Propriedade Intelectual eram objecto das maiores preocupações industriais. Os destinatários da regulação conheciam a lei detalhadamente. Estavam bem representados, quer no momento em que as leis eram feitas, quer no momento em que eram aplicadas, e estavam constantemente alerta em relação a um conjunto bem conhecido de ameaças económicas dos seus concorrentes horizontais. Mas os novos cidadãos-editores da Internet não estão bem representados nos encontros domésticos e internacionais e os seus interesses não se limitam seguramente ao “consumo passivo.” Não podem reagir à ameaça de serem processados recorrendo aos advogados da empresa onde trabalham. Poderemos então aplicar as assumpções dos últimos 120 anos ao processo de tomada de decisões que dá origem a estas leis? Ou será que estamos a dizer que o seu trabalho, a sua contribuição para a cultura e o debate não são verdadeiramente importantes? 
  • As regras que regem a Propriedade Intelectual não só afectam uma audiência diferente, como também implicam directamente valores diferentes. Mais do que nunca, têm um impacto directo e mensurável na protecção da privacidade, na liberdade de expressão, no desenho da infra-estrutura das comunicações e no acesso à educação e ao património cultural. Se alguma vez o processo de tomada de decisões se resumiu a um simples ajuste tecnocrata destinado a facilitar as indústrias afectadas, não pode, nos dias que correm, pretender continuar a sê-lo. E, todavia, tem-se adaptado muito lentamente a estas mudanças, quer no que respeita ao processo, quer no que respeita ao conteúdo. 
  • Os debates na OMPI parecem frequentemente cegos em relação às mudanças a níveis dos efeitos spillover provocados pelos acordos internacionais. Regras que foram feitas para impedir que um editor da época vitoriana copiasse o livro de outrem não criaram grandes obstáculos a que, na prática, um escritor de cartas anónimas fizesse campanha a favor do sufrágio feminino. Porém, os efeitos práticos e tecnológicos da regulação da Internet em sede de Propriedade Intelectual podem muito bem repercutir-se num actual activista dos direitos humanos que procura o anonimato, ou num funcionário que tenta denunciar as práticas reprováveis da empresa onde trabalha. Isto não significa que devamos deixar de regular a Internet. Mas significa que devemos fazê-lo prestando muito mais atenção aos efeitos dessa regulação – regulação que cada vez mais passa por formas tecnológicas. 
  • A tecnologia das comunicações usada por milhões de cidadãos possibilita a reprodução e distribuição a uma escala que antigamente se encontrava reservada para os gigantes da indústria. Este facto tem sido apresentado nos debates acerca da política da Propriedade Intelectual em grande parte como um apelo às ameaças da distribuição não autorizada e da pirataria. Mas também apresenta o risco oposto, ao qual, infelizmente, não tem sido dispensada muita atenção: na verdade, as nossas regras de Propriedade Intelectual reduzem a capacidade da Internet de gerar actividade intelectual, de encorajar novos métodos de inovação, e de distribuir cultura e educação à escala mundial. A Internet é a mais democrática tecnologia da expressão inventada até hoje, a tecnologia que comporta o maior potencial de promoção da liberdade de expressão, colocando-a à disposição daqueles que não são donos de uma editora ou de uma cadeia de televisão. Permite-nos sonhar com a possibilidade de oferecermos a uma audiência verdadeiramente global o acesso aos materiais educativos, culturais e científicos que existem no mundo. As nossas regras acerca da Propriedade Intelectual têm que aproveitar este facto, em vez de legislarem no sentido de tornar a Internet um meio que pareça mais familiar e menos democrático. 
  • Os responsáveis pela tomada de decisões têm tido uma visão 20/20 acerca dos perigos das cópias a custos muito próximos do zero, mas têm sido cegos quanto aos seus efeitos – quer no que respeita às tradicionais companhias de conteúdos, quer no que respeita à sociedade em geral. De facto, é de assinalar que algumas das áreas em que a Internet teve um sucesso quase imediato – por exemplo, como uma gigante base de dados acerca de qualquer assunto que possamos imaginar – são tradicionalmente aquelas em que há poucos ou nenhuns direitos de Propriedade Intelectual. O software utilizado pela Internet é na sua esmagadora maioria open source, outro dos métodos inovativos possibilitados pela existência da Internet ao qual os responsáveis pelas tomadas de decisões têm sido lentos a adaptar-se. A Internet oferece-nos possibilidades extraordinárias de alcançar os verdadeiros objectivos que a política da Propriedade Intelectual deve prosseguir: encorajar a inovação e facilitar a disseminação de materiais culturais e educativos. Todavia, a política de tomada de decisões tem-se concentrado quase exclusivamente no potencial da Internet para permitir o aparecimento de cópias ilícitas. Há um exemplo que ilustra bem este ponto. 
  • O termo dos direitos de autor é hoje absurdamente longo. Os efeitos práticos das mais recentes extensões retrospectivas, de um termo que já oferecia 99% do valor de um direito de autor perpétuo, tiveram como efeito prático a promoção de um escasso número de obras que ainda são editadas, ou que ainda se encontram em circulação. As estimativas apontam para números entre 1% e 4%. No entanto, para se conferir este monopólio que beneficia um punhado de obras – obras pelas quais o público “já tinha pago” através de um termo para os respectivos direitos de autor que deveria ter sido aceitável para o autor original e para o editor – foi negado o acesso do público às restantes 96% obras sujeitas a direitos de autor que, na ausência da extensão retrospectiva, teriam entrado no domínio público. Antes do advento da Internet, esta perda – ainda que real – era apenas teorética no que respeita à maior parte das obras. Os custos de reimpressão de um livro fora de catálogo ou de copiar e projectar um filme que estivesse no domínio público eram na maior parte dos casos proibitivos. Mas quando introduzimos a Internet na equação, torna-se possível imaginar a digitalização substancial de partes significativas do património nacional à medida que vai emergindo no domínio público, tornando-o acessível a todo o mundo. Isto, sim, é que seria prosseguir o objectivo da concessão de direitos de autor: estimular a criatividade e promover o acesso. Tem efeitos positivos na educação, no desenvolvimento e na criatividade. No entanto, o processo internacional de “harmonização” não pára, ampliando constantemente os termos dos direitos de autor retrospectivamente, negando o acesso a materiais culturais e educativos que deveriam estar à disposição de toda a gente. A “perda” provocada neste caso pelo funcionamento dos direitos de autor rivaliza e excede as possíveis perdas que advenham da “pirataria”; contudo, esta perda nunca é mencionada nos debates internacionais acerca deste tema. Há ainda muitos outros exemplos: a erosão das formalidades dos direitos de autor tem efeitos involuntários negativos e maciços no contexto online, por exemplo, mas a “cultura maximalista de direitos” parece totalmente alheia a qualquer um desses efeitos. 

D. A Cegueira em relação às Alternativas: Dentro e Fora do Sistema 

  • Mesmo quando o sistema da Propriedade Intelectual funciona tal como era suposto funcionar, não pode com certeza resolver alguns dos mais urgentes problemas humanos. Uma política de inovação farmacêutica que dependa exclusivamente dos incentivos oferecidos pelas patentes, por exemplo, nunca poderá fornecer os medicamentos necessários para a cura das doenças dos pobres globais. Quando escolhemos centrar a nossa política de inovação na área farmacêutica exclusivamente na provisão dos incentivos oferecidos pelo sistema de patentes, estamos a escolher ter crianças que morrem de malária e da doença do sono. Esta não é uma crítica à indústria farmacêutica, nem sequer ao actual sistema de patentes – ambos funcionam tal como foram concebidos. É uma crítica à nossa crença de que este sistema é o único que produz inovação. É, portanto, mandatório que organizações como a OMPI sejam mais receptivas às propostas que tentam reformar, ou suplementar o sistema de Propriedade Intelectual, ou que oferecem alternativas a este sistema. É trágico constatar que foram precisos 120 anos para regressarmos à exploração dos mecanismos que encorajam a inovação – tais como sistemas de financiamento estatal de prémios cujos produtos são distribuídos ao custo marginal – que foram amplamente discutidos e nalguns casos até postos em prática nos anos que antecederam as convenções de Paris e Berna. Infelizmente, esta história – e muitas outras críticas certeiras dos limites da política da Propriedade Intelectual que a acompanham – parece não ter lugar nos actuais debates na OMPI. A cultura dos direitos é míope, mas também sofre de amnésia cultural. 
  • Há alternativas dentro do sistema actual – que passam pelo recurso aos direitos hoje existentes. O software livre ou open source e os trabalhos colaborativos nas áreas da ciência e da medicina têm demonstrado que há muitas maneiras de se produzir inovação de alta qualidade, inovação que o sistema de Propriedade Intelectual deveria facilitar e encorajar da mesma maneira que encoraja métodos mais tradicionais, proprietários. Todavia, há casos em que os responsáveis pela tomada de decisões demonstram uma total falta de compreensão, ou em que se mostram activamente hostis, a este género de tentativas, como se o sistema de Propriedade Intelectual impusesse fidelidade a um determinado modelo de negócios de inovação. O exemplo acabado é a surpreendente hostilidade demonstrada pelos governos de alguns Estados em relação à recente proposta que propunha que a OMPI explorasse o potencial destes trabalhos abertos e colaborativos. A proposta foi acolhida com entusiasmo pelo staff da OMPI. E, no entanto, foi aniquilada pelas pressões das empresas que trabalham de acordo com um modelo de negócios diferente, que conseguiram usar a linguagem da “cultura de direitos” para convencer os responsáveis pela tomada de decisões dos Estados que só os modelos “closed source” é que são legítimos. Um alto oficial do PTO (Patent and Trademark Office) chegou mesmo a argumentar que uma reunião que debatesse este assunto seria contrária aos objectivos da OMPI, que nas suas palavras consistem em “promover os direitos da Propriedade Intelectual. Uma reunião que tenha como propósito abolir ou renunciar a esses direitos parece-nos contrária aos objectivos da OMPI.” O nível de ignorância revelado por um comentário deste género é lamentável. A comunidade do software open source usa a Propriedade Intelectual para alcançar um assinalável nível de inovação; se os direitos de autor não existissem, a Licença Pública Geral seria inexequível. As pessoas que desenvolvem o software adquirem os direitos ao abrigo desta licença e aceitam as suas limitações, tal como numa patent pool ou em qualquer outro negócio. Dizer que este uso próspero e imaginativo dos direitos da Propriedade Intelectual está de alguma maneira fora do mundo da Propriedade Intelectual é como dizer que o único uso legítimo da propriedade real é sermos nós a usá-la e não deixarmos mais ninguém entrar, em caso algum. É absurdo. Uma vez mais, a “cultura de direitos” impõe uma cegueira que limita a nossa imaginação precisamente quando lhe devia dar mais rédea solta. 

II. OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DE UMA POLÍTICA RACIONAL E HUMANA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL 

Se não pudéssemos ter uma política da Propriedade Intelectual que promovesse genuinamente a inovação, o desenvolvimento internacional e o bem-estar, teríamos que expor as assumpções da cultura maximalista de direitos ao escrutínio democrático que, de forma evidente, tem faltado nesta área. Há mais de 50 anos, os ambientalistas ensinaram-nos a ver mais além de um conjunto de problemas disconexos no mundo natural – a poluição em cadeia e a qualidade do ar, zonas costeiras que começavam a desaparecer –, integrando-os num sistema maior e interrelacionado chamado “o ambiente”. Um desenvolvimento bem sucedido só poderia ir para diante se fosse sustentado; o impacto ambiental tem que fazer parte da análise. De forma semelhante, quer a nível nacional quer a nível internacional, temos que recuperar a perspectiva tradicional das nossas leis da Propriedade Intelectual; perspectiva que nos diz que não são os direitos que geram o progresso, mas o equilíbrio entre os direitos e o domínio público, um equilíbrio que depende em larga medida do contexto em que nos encontramos. Um tamanho único não serve para todos os casos. 

Este argumento tem implicações que envolvem outras entidades para além da OMPI, como é evidente, mas implica também que precisamos de reorientar a missão da OMPI para o século XXI. A OMPI deu alguns passos vacilantes em relação a esta posição no seu mais recente Plano a Médio Prazo, mas se quer alcançar os seus objectivos na promoção da actividade intelectual e servir os cidadãos do mundo, tem que abandonar a visão em túnel da cultura maximalista de direitos e adoptar os seguintes sete princípios. 

  1. Equilíbrio

    A política da Propriedade Intelectual deve manter um equilíbrio entre a esfera do material protegido e o domínio público. Quando a OMPI menciona o termo “equilíbrio” normalmente refere-se a um equilíbrio entre produtor e consumidor, ou entre países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento. Mas os sistemas de Propriedade Intelectual assentam num tipo de equilíbrio diferente, que tem sido negligenciado até agora. A ciência, a tecnologia e o próprio mercado dependem de um “commons” rico de material à disposição de todos, tal como dependem dos incentivos fornecidos pelos direitos de Propriedade Intelectual. Um número demasiado elevado de direitos irá travar a inovação, tal como é claro um número demasiado baixo o fará. O secretariado da OMPI deveria ser obrigado a apresentar um “Estudo de Impacto Ambiental Intelectual” por cada nova proposta de aumento de direitos, explicando detalhadamente os seus efeitos no domínio público, e nas actividades comerciais, inovativas, artísticas e educacionais que dependem do domínio público. 
  1. Proporcionalidade

    Toda e qualquer legislação em sede de Propriedade Intelectual acarreta custos e benefícios para o público. Aumentar o termo dos direitos de autor retrospectivamente, por exemplo, nega ao público durante vinte anos o acesso a uma faixa de cultura para beneficiar uma exígua minoria de obras que ainda são exploradas comercialmente. Qualquer outra regulação que implicasse custos maciços para alcançar benefícios reduzidos seria objecto de intenso escrutínio. A regulação da Propriedade Intelectual através da OMPI não deveria ser uma excepção. Qualquer medida que se proponha nesta área deve ser acompanhada de um estudo formal, detalhado e específico dos custos e benefícios. 
  1. Adequação do Desenvolvimento

    A história das leis da Propriedade Intelectual à qual a OMPI tem presidido é uma história de mudanças assinaláveis, com uma assinalável variação das regras no tempo e no espaço, em diferentes momentos do desenvolvimento económico. De acordo com esta história, a OMPI precisa de se afirmar como uma contra-força em relação à tendência para se imporem soluções do tipo “um tamanho serve para todos” à escala mundial, e não ser o local onde os standards “TRIPS-plus” são adoptados. 
  1. Participação e Transparência

    As leis da Propriedade Intelectual tiveram sempre implicações para lá da regulação dos concorrentes dentro de uma mesma indústria, mas hoje essas implicações são tão grandes e tão prementes que exigem um procedimento muito mais participatório e transparente. A OMPI tem que continuar a dar os passos favoráveis que já começou a dar no sentido de aumentar a participação de grupos da sociedade civil na discussão e no debate. Quando a Propriedade Intelectual atinge as áreas mais diversificadas, desde o acesso a medicamentos de primeira necessidade à liberdade de expressão, à educação e à privacidade online, não podem ser tomadas decisões ao abrigo de assumpções feitas por uma elite de advogados e grupos industriais. 
  1. Abertura a Alternativas e Adições

    A Propriedade Intelectual é uma notável invenção humana, mas não pode resolver todos os problemas. Um sistema de inovação farmacêutica assente em patentes, por exemplo, não cura as doenças dos pobres globais. Para resolver estes problemas, e muitos outros, temos que raciocinar de forma mais imaginativa acerca de métodos alternativos e de métodos adicionais para estimular e organizar a inovação. A OMPI, que tem uma longa experiência em termos de raciocínio acerca dos limites da Propriedade Intelectual, e que tem seguramente presidido a desenvolvimentos que se repercutem muito para lá da esfera dos direitos de autor, das patentes e das marcas registadas, deveria tornar-se na mais proeminente instituição global em que esses métodos alternativos fossem apresentados e debatidos. O objectivo da OMPI não pode limitar-se a criar direitos de Propriedade Intelectual cada vez maiores. Nas palavras de um acordo entre a OMPI e a ONU, o seu objectivo é mais amplo, consistindo em “promover a actividade intelectual criativa e (…) facilitar a transferência de tecnologia relativa à Propriedade Industrial para os países em vias de desenvolvimento, de forma a acelerar o desenvolvimento económico, social e cultural.” A longo prazo, temos que compreender que a ideia de que no comércio internacional todos devem jogar pelas mesmas regras não consiste em fazer com que cada país adopte um conjunto uniforme de direitos de Propriedade Intelectual, mas com que cada país assuma a quota parte que lhe compete na investigação global e a sua quota parte dos custos acarretados pelo desenvolvimento – um processo que, todavia, está organizado de forma segmentada por áreas ou sectores. A resposta para a criança que sofre da doença do sono ou de malária não pode ser “as nossas ferramentas não podem resolver os teus problemas.” A OMPI tem que ser a instituição à qual nos juntamos, e não contra a qual lutamos, na busca de alternativas. 
  1. Perspectivar a Internet como uma Solução, não como um Problema

    Desde meados da década de 90 até agora, a tendência na Propriedade Intelectual internacional tem sido tratar a Internet mais como uma ameaça do que como uma oportunidade. Apesar do facto de a Internet ter repetidamente demonstrado que é capaz de produzir – através de redes colaborativas dispersas – inovação e actividade intelectual exactamente do mesmo género da que a OMPI deve supostamente promover, os responsáveis pela tomada de decisões só se têm preocupado com a ameaça das cópias ilícitas. A OMPI deveria criar um comité permanente que se ocupasse de dois problemas-chave: as barreiras que a Propriedade Intelectual internacional cria à educação global e ao acesso à cultura (por exemplo, através de termos dos direitos de autor aumentados retrospectivamente por períodos demasiado longos) e as formas através das quais as regras tradicionais da Propriedade Intelectual têm de ser repensadas quando aplicadas aos cidadãos-editores do ciberespaço. A OMPI tem que trabalhar com os novos meios, em vez de deformá-los na tentativa de os tornar mais parecidos com os meios existentes quando os direitos tradicionais da Propriedade Intelectual foram construídos. 
  1. Neutralidade

    No reino dos actuais direitos da Propriedade Intelectual, a nossa política deve ser neutra em relação aos diferentes métodos que usam esses direitos para estimular a inovação. Por exemplo, todos os que desenvolvem software, seja ele closed source, proprietário, ou open source, colaborativo, usam o sistema de Propriedade Intelectual para gerarem inovação de valor global. Não compete à OMPI determinar quem são os vencedores nesta competição entre diferentes métodos de inovação. A OMPI deveria preocupar-se com o impacto das patentes de software no desenvolvimento de software open source, tal como se preocupa com o impacto da pirataria de software no desenvolvimento de software closed source. Os direitos da Propriedade Intelectual são ferramentas, e a OMPI precisa de responder de maneira criativa e flexível às novas formas em que essas ferramentas podem ser usadas, sem olhar para todo e qualquer método de inovação como algo ilegítimo. 

III. CONCLUSÃO 

As ideias apresentadas neste Manifesto não são radicais. Quando muito, ilustram uma tendência conservadora – o regresso às raízes racionais da Propriedade Intelectual, em vez da apologia dos seus recentes excessos. As patentes, por exemplo, têm um termo restrito e o seu sistema foi concebido de forma a alimentar o domínio público. Os direitos de autor foram criados para estarem apenas em vigor durante um período de tempo limitado, para regular textos, não para criminalizar tecnologias, para facilitar o acesso e não para o restringir. A própria tradição de droits d’auteur foi concebida em torno da assumpção de que havia limitações sociais e temporais em relação às reivindicações do autor; um direito natural não equivalia a um direito absoluto. Nem Macaulay nem Jefferson, nem Le Chapelier nem Rousseau, reconheceriam as suas ideias no edifício que construímos hoje. Em nome do génio do autor e do inventor, estamos a criar um sistema burocrático de que só um cobrador de impostos ou um monopolista poderia gostar. Na realidade, é muito menos provável vermos o génio fluir neste mundo, com as suas regulações, a sua vigilância invasiva, o seu domínio público privatizado e o seu hábito de taxar o conhecimento. Mesmo que o sistema funcionasse exactamente como foi concebido para funcionar, não poderia resolver alguns dos mais importantes problemas humanos que enfrentamos, e provavelmente iria diminuir as capacidades das nossas tecnologias da comunicação mais importantes. E agora impomos esse sistema ao resto do mundo, declarando que quem não tiver exactamente os mesmos monopólios que nós temos está a distorcer o comércio. É verdade que o poder da OMPI para combater estas tendência é, de momento, limitado. Mas se queremos combatê-las, terá que haver um debate internacional, informado e democrático acerca da trajectória que temos vindo a seguir. A OMPI tem um papel central neste debate. Deveria assumir esse papel, em vez de tentar apanhar o comboio dos direitos constantemente em expansão. 
 
EPÍLOGO 

Este manifesto é a minha tentativa de trazer maior escrutínio democrático aos mais candentes problemas evidenciados pela política internacional de tomada de decisões respeitantes à Propriedade Intelectual. Foi preparado para um Encontro acerca do Futuro da OMPI, que teve lugar em Genebra, em Setembro de 2004, promovido pelo Open Society Institute, o Consumer Project on Technology e o Center for the Study of the Public Domain de Duke, mas representa exclusivamente os meus pontos de vista. É uma tentativa de condensar em escassas páginas, destinadas a uma audiência de não-especialistas, problemas que têm sido alvo de estudos aprofundados; neste processo de condensação, muitos temas foram extremamente abreviados ou simplesmente ignorados, porque senti que receberiam a devida atenção noutros lugares. Agradeço às várias pessoas que, sem necessariamente concordarem com os meus pontos de vista, me dispensaram os seus comentários acerca deste trabalho: Arti Rai, Jennifer Jenkins, Larry Lessig, Sisule Musungu, Yochai Benkler, Justin Hughes, Cory Doctorow, Anthony So, Jamie Love, Bernt Hugenholtz, Wendy Seltzer, Vera Franz, Darius Cuplinskas e Terry Fisher. 

Leituras suplementares recomendadas: 


1 James Boyle 2004. Este Manifesto foi publicado ao abrigo de uma licença Creative Commons Atribuição-Uso Não Comercial-Partilha nos Termos da Mesma Licença. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.0/. James Boyle é professor de Direito (cátedra William Neal Reynolds) na Duke Law School e co-fundador do Center for the Study of the Public Domain. As ideias defendidas no presente Manifesto são exclusivamente do Autor e não devem ser atribuídas a nenhuma das organizações com as quais tem vindo a colaborar.